O presente texto carrega em si o teor dos estudos do professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Ridenti, que analisa as relações de política e cultura dos anos 60 e 70, recorrendo-se a noção de “estruturas de sentimento” de Raymond Williams. A efervescência cultural trazida pela conversa íntima entre arte e política faz surgir o Cinema Novo, o Teatro Arena, os Centros de Culturas da UNE (União Nacional dos Estudantes) e o movimento de músicas engajadas da MPB. O Ceará foi campo de florescimento do Pessoal do Ceará, movimento de jovens pela luta da liberdade. Seria piegas afirmar que a produção artística do Pessoal fora apenas de engajamento contra o regime da ditadura militar, mas a falta de expressão e as mazelas deixadas por um regime totalitário eram encalços para as críticas metafóricas e diluídas das canções de sujeitos como Belchior, Fagner e Ednardo. Eternizadas na MPB por festivais e grandes interpretes como Elis Regina, as músicas dos jovens despenteados carregavam a pureza matutina, os arranjos rock and roll liquidificados juntos com sons regionais na geleia da música setentista. Junto com tudo isto, o tempero do tempo, da revolta, da melancolia e do otimismo irônico existencial. É a narração perfeita da época e dos sentimentos da juventude como um todo. Jaz atemporal!
Nossa alucinação continua sendo suportar o dia-a-dia, muitos de nossos ídolos ainda são os mesmo e as aparências não enganam não.
P.S.: Trata-se de uma ficção trans-histórica. Síntese tímida que não representa sequer uma vírgula de todas as páginas, não converge apenas no movimento do Pessoal do Ceará, mas em todo o ideário dos jovens à época.
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No centro, hasteamos a bandeira do Vietnã em plena Praça do Ferreira, saltávamos de esquina em esquina panfletando e fugindo dos guardas. Reuníamos-nos em bares, na faculdade de arquitetura ou na casa de Edie¹. Esperávamos ativamente os discos de Chico, Caetano e Gil, eram como cartas com notícias do movimento lá no Sul, fazendo também parte do nosso caldo cultural. Se eles lá tinham a garota de Ipanema, cá tínhamos as garotas com síndrome de Iracema.
Gostávamos de passear de bicicleta pela praia bebendo Gim e vinho barato. Mixávamos linguagens, sons, pensamentos, cada qual trazendo em suas mochilas referências individuais. Mas tínhamos o mesmo desejo de Igualitê, fraternitê e libertê. Púnhamos à júbilo, no riso triste da alegria à prova de balas. Evocávamos o suor de Maria Rosa, as velas do Mucuripe, o forte, a praia, a nossa cidade, o centauro Fru Fru, o Pageú, o farol velho, o novo e o Pirambu. Evoé à padaria, ao pão, ao padeiro e ao caju.
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens. - Alertava-me Bel², pessimista, sobre os perigos da cidade. O conheci já em 1973, o dedo em V; cabelo ao vento; Teti... ah Teti era ouro, ouro em pó que reluz. Nosso amigo Fagner respondia sempre aos que batiam à porta: - “Aqui não acontece nada, não. Nada.Nada, nada, nada. Absolutamente nada”. E eu me ria, e era apenas com sorriso que Edie me respondia. Na praia, luzindo na madrugada, braços e corpos suados, falávamos de amor. Não posso esquecer-me de Amelinha, mulher bonita e carinhosa, bem-querer de Rodger. Todos célebres líricos, únicos. Eram muitos, mais do que se pensa; muito menos do que o necessário para lançar o grito que toda nação precisava ouvir. Lá no CÉU³ discutíamos o anti-arrocho e as greves. Dali nós íamos pro Prequé da Tupi, sabe onde é o Prequé? Naquela rua que sai em frente ao Conservatório e era alí o Bar Tupí. Caminhávamos até o Balão Vermelho, na Duque de Caxias embaixo do Jalcy. Depois descíamos à beira-mar, entre luzes nos escondíamos e nos perdíamos uns dos outros. Eu ficava lá para ver a lua cheia e guarda-la na memória, assim tentava esquecer-me da verdade que eu preferia nem ver. A voz já rouca não gritava mais nada. Adiante, alguns retornavam à Praça do Ferreira, tecer conversas intelectuais com os comunistas ou conversar sobre o futebol e visitar os cabarés das francesas de Recife.
Cantávamos por todo canto, porque cantar parecia com não morrer, viver, uma vida com razão. Não éramos bons vivants de classe-média, nem inconsequentes. Nossa arte era política e nossa política era a liberdade. Queríamos mesmo era que nosso canto torto cortasse feito carne a política vencida dos coronéis “cesistas” e “adautistas”.
Alguns jovens tinham aulas de defesa pessoal e artes marciais no DCE da UFC. Alguns dos meus foram quase presos jogando uma bomba no IBEU. Na Química e na Física os companheiros produziam bombas molotov e o rasga lata fazia um barulho ensurdecedor, em reação a polícia jogava gás lacrimogêneo e agredia a todos. Cada vez evoluía mais dentro de nós a revolta e a melancolia e mais ofensiva era a polícia; centenas de companheiros já presos, torturados e mortos. Fausto Nilo havia sido preso no congresso da UNE em Ibiúna-SP. Rodger ficou preso durante nove dias por ter mimeografado um panfleto do movimento estudantil. Aumentava assim nossa agressividade nos versos, nas canções e nas ruas.
Por volta de 70 recebi um telefonema de Nilo, que estava no Rio de Janeiro se bem me lembro, dizendo: - “Oi, coração. Não dá pra falar muito não, a coisa aqui tá preta, mas sigo cantando e chorando.”. Anunciava também a morte de Tito, o frei que havia sido preso com ele e mais centenas de milhares de estudantes no congresso da UNE. O desespero nos batia à pele e, além disso, muitos do Pessoal estavam deixando Fortaleza, tomados por desesperança. Mas nós sabíamos, dentro do peito; eles são muitos, mas não podem voar.
A ditadura tornou-se insustentável, naquela política desenvolvimentista as pessoas eram renegadas. Desempregados, salário mau pago, crescimento de favelas, perseguições, salas frias de torturas e uma cultura imposta. Jornalistas, cantores, pintores, intelectuais eram presos e a carnificina apodrecia o país. A partir do momento que a ditadura começou a afetar burgueses e a classe empresarial, além de matar e trucidar filhos da elite, ela desmoronou-se. As lutas políticas, sociais, esquerdistas e, sobretudo o afloramento artístico que ocorreu no Brasil a partir de 60 e nos anos 70 foram mais que significativos e elementares para a queda do regime ditatorial em 85. O sumo deixado é adoçado sempre e sempre pela juventude que nunca deixa de ser revolucionária por essência.
1- Edie - Ednardo.
2- Bel - Belchior
3- CÉU - Clube do Estudante Universitário
Texto: Thalita Moura Vieira.
Nossa alucinação continua sendo suportar o dia-a-dia, muitos de nossos ídolos ainda são os mesmo e as aparências não enganam não.
P.S.: Trata-se de uma ficção trans-histórica. Síntese tímida que não representa sequer uma vírgula de todas as páginas, não converge apenas no movimento do Pessoal do Ceará, mas em todo o ideário dos jovens à época.
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| Foto: Amelinha, álbum Janelas do Brasil. |
Gostávamos de passear de bicicleta pela praia bebendo Gim e vinho barato. Mixávamos linguagens, sons, pensamentos, cada qual trazendo em suas mochilas referências individuais. Mas tínhamos o mesmo desejo de Igualitê, fraternitê e libertê. Púnhamos à júbilo, no riso triste da alegria à prova de balas. Evocávamos o suor de Maria Rosa, as velas do Mucuripe, o forte, a praia, a nossa cidade, o centauro Fru Fru, o Pageú, o farol velho, o novo e o Pirambu. Evoé à padaria, ao pão, ao padeiro e ao caju.
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens. - Alertava-me Bel², pessimista, sobre os perigos da cidade. O conheci já em 1973, o dedo em V; cabelo ao vento; Teti... ah Teti era ouro, ouro em pó que reluz. Nosso amigo Fagner respondia sempre aos que batiam à porta: - “Aqui não acontece nada, não. Nada.Nada, nada, nada. Absolutamente nada”. E eu me ria, e era apenas com sorriso que Edie me respondia. Na praia, luzindo na madrugada, braços e corpos suados, falávamos de amor. Não posso esquecer-me de Amelinha, mulher bonita e carinhosa, bem-querer de Rodger. Todos célebres líricos, únicos. Eram muitos, mais do que se pensa; muito menos do que o necessário para lançar o grito que toda nação precisava ouvir. Lá no CÉU³ discutíamos o anti-arrocho e as greves. Dali nós íamos pro Prequé da Tupi, sabe onde é o Prequé? Naquela rua que sai em frente ao Conservatório e era alí o Bar Tupí. Caminhávamos até o Balão Vermelho, na Duque de Caxias embaixo do Jalcy. Depois descíamos à beira-mar, entre luzes nos escondíamos e nos perdíamos uns dos outros. Eu ficava lá para ver a lua cheia e guarda-la na memória, assim tentava esquecer-me da verdade que eu preferia nem ver. A voz já rouca não gritava mais nada. Adiante, alguns retornavam à Praça do Ferreira, tecer conversas intelectuais com os comunistas ou conversar sobre o futebol e visitar os cabarés das francesas de Recife.
Cantávamos por todo canto, porque cantar parecia com não morrer, viver, uma vida com razão. Não éramos bons vivants de classe-média, nem inconsequentes. Nossa arte era política e nossa política era a liberdade. Queríamos mesmo era que nosso canto torto cortasse feito carne a política vencida dos coronéis “cesistas” e “adautistas”.
Alguns jovens tinham aulas de defesa pessoal e artes marciais no DCE da UFC. Alguns dos meus foram quase presos jogando uma bomba no IBEU. Na Química e na Física os companheiros produziam bombas molotov e o rasga lata fazia um barulho ensurdecedor, em reação a polícia jogava gás lacrimogêneo e agredia a todos. Cada vez evoluía mais dentro de nós a revolta e a melancolia e mais ofensiva era a polícia; centenas de companheiros já presos, torturados e mortos. Fausto Nilo havia sido preso no congresso da UNE em Ibiúna-SP. Rodger ficou preso durante nove dias por ter mimeografado um panfleto do movimento estudantil. Aumentava assim nossa agressividade nos versos, nas canções e nas ruas.
Por volta de 70 recebi um telefonema de Nilo, que estava no Rio de Janeiro se bem me lembro, dizendo: - “Oi, coração. Não dá pra falar muito não, a coisa aqui tá preta, mas sigo cantando e chorando.”. Anunciava também a morte de Tito, o frei que havia sido preso com ele e mais centenas de milhares de estudantes no congresso da UNE. O desespero nos batia à pele e, além disso, muitos do Pessoal estavam deixando Fortaleza, tomados por desesperança. Mas nós sabíamos, dentro do peito; eles são muitos, mas não podem voar.
A ditadura tornou-se insustentável, naquela política desenvolvimentista as pessoas eram renegadas. Desempregados, salário mau pago, crescimento de favelas, perseguições, salas frias de torturas e uma cultura imposta. Jornalistas, cantores, pintores, intelectuais eram presos e a carnificina apodrecia o país. A partir do momento que a ditadura começou a afetar burgueses e a classe empresarial, além de matar e trucidar filhos da elite, ela desmoronou-se. As lutas políticas, sociais, esquerdistas e, sobretudo o afloramento artístico que ocorreu no Brasil a partir de 60 e nos anos 70 foram mais que significativos e elementares para a queda do regime ditatorial em 85. O sumo deixado é adoçado sempre e sempre pela juventude que nunca deixa de ser revolucionária por essência.
1- Edie - Ednardo.
2- Bel - Belchior
3- CÉU - Clube do Estudante Universitário
