sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Os mestres dos mares

Postado por Rômulo Costa 7.12.12

No final do século XIX, o Ceará vivia uma intensa seca, que findou por desorganizar a já pequena produção agrícola da província. A fome causada pela estiagem e a epidemia de varíola que matou mais de um quarto da população provocaram um intenso comércio interprovincial de escravos. O destino era, principalmente, o sudeste, sendo o Porto do Mucuripe a única maneira de escoá-los para essa região do País. Nesse período, surge a figura mais representativa da libertação escravista no Ceará, Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar.

Filho de um pescador e uma rendeira, Chico da Matilde, como era conhecido, sempre teve sua vida ligada ao litoral. Exímio jangadeiro, tornou-se chefe dos condutores de jangadas e botes das praias cearenses, além de trabalhar um período como marinheiro e, anos depois, ser nomeado prático da Capitania dos Portos. Mulato e testemunhando o intenso tráfico de escravos no porto fortalezense, liderou o movimento de jangadeiros que se recusavam a transportar os negros até os navios ali aportados. Com o único porto da província sendo fechado pelos manifestantes, os donos de escravos se viram obrigados a libertá-los, pois a estiagem não os dava a possibilidade de mantê-los. O movimento contribuiu para a abolição da escravidão na província cearense, fato pioneiro no Brasil.

Dragão do Mar é mais um exemplo de liderança popular que se insurgiu contra atitudes exageradas do poder elitista e repressor. Na história do Brasil, outras personalidades de origem humilde assumiram a linha de frente contra os excessos dos poderosos. Como João Cândido, líder da revolta dos marinheiros 1910, cuja reivindicação era a fim dos castigos físicos por parte dos oficiais. O Almirante Negro, como a imprensa o chamou à época, era filho de escravos e viu no serviço militar a oportunidade para ascender socialmente. Ainda adolescente, alistou-se na Marinha e por lá passou 15 anos de sua vida, chegando a viajar à Grã-Bretanha para acompanhar o processo de construção de alguns navios encomendados pelo Governo brasileiro. Foi lá que teve conhecimento de uma reivindicação dos russos para melhores condições de trabalho e alimentação. De volta ao Brasil, ele e outros colegas, indignados com a intensa agressividade dos oficiais, pediram formalmente que fosse cumprida a lei que proibia o uso de chibatas como castigo. Sem resultado, tomaram pose de diversos navios da Marinha de Guerra do Brasil e direcionaram os seus canhões para a capital da República. Descumprindo a promessa de anistia dos envolvidos e prometendo extinguir o uso de agressões físicas, a Revolta da Chibata teve fim com a prisão de todos os envolvidos presos, inclusive, João Cândido, que, além de passar dois anos encarcerado, foi perseguido pela Marinha por toda a vida.

O Almirante Negro -- ao contrário de Dragão do Mar, que fora afastado de seu trabalho na Capitania dos Portos, mas o restabeleceu com promoção, à pedido do Imperador -- findou a vida na miséria e sem prestígio. Uma das primeiras menções a João Cândido como herói surge apenas na década de 1970, quando Aldir Blanc e João Bosco fazem referência ao marinheiro no samba Mestre-Sala dos Mares. Na canção, contam a história do "navegante negro", troca de nome imposta pela censura que alegou não haver almirantes negros na Marinha Brasileira. Nela, João Cândido é retratado como um novo Dragão do Mar.

Certamente, os dois têm muito em comum. Descendentes de escravos, filhos do mar, sub-julgados por uma poder opressor e elitista. Coragem de um povo que luta, reivindica e não dobra aos desejos de quem detém o poder. Assim como Chico da Matilde e João Cândido, outras pessoas com história parecida tentaram melhorar a sua condição através da luta. A eles, devemos o reconhecimento histórico e o incentivo para que as transformações sociais por eles almejadas não se percam.

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