domingo, 18 de novembro de 2012

O dedo na ferida

Postado por Rômulo Costa 18.11.12


Em tempos de Ditadura Militar, a música tomava para si a responsabilidade de denunciar os exageros do Governo e a própria censura a que era submetida. Valendo-se de metáforas, jogos linguísticos e do insuficiente conhecimento artístico dos censores (quase sempre militares descolocados para cumprir essa função), canções de artistas como Geraldo Vandré e Chico Buarque mostravam um Brasil diferente das propagandas oficiais. Hoje, livres do governo repressivo, ainda vivemos com sérios problemas, sobretudo os sócio-econômicos, que resvalam nas desigualdades sociais. Nessa perspectiva, a música ainda tem a importante função de expandir a voz dos oprimidos. Contudo, uma diferença afasta as canções de protesto da atualidade daquelas feitas nos anos 60 e 70: se antes era produzida por uma juventude intelectualizada da elite, hoje ela vem como um grito da classe pobre, feita por gente que sente em si as injustiças da periferia.


"O rap é atitude política", diz Criolo, um dos principais artistas brasileiros do referido gênero. E é como um ato político que os MCs põem em relevo os bastidores de uma comunidade não assistida pelo poder público e, por vezes, "esquecida" pela imprensa. Isso foi evidenciado no caso Pinheirinho, em que a polícia, cumprindo uma ordem judicial de reintegração de posse, agiu com truculência ao expulsar uma população estimada entre 6 a 9 mil pessoas de uma área invadida na região de São José dos Campos, em São Paulo. A imprensa só noticiou o fato depois das cenas de violência circularem na internet, e, ainda assim, não foi provocada a reflexão necessária para o contexto. O rap -- um dos únicos gêneros que ainda trazem questões políticas à música brasileira -- cumpriu seu papel. Emicida -- também vítima de uma desocupação parecida na infância -- emplacou a música Dedo na Ferida, baseada nas atrocidades ocorridas em Pinheirinho. "Alphaville foi invasão, incrimine-os", provoca o rapper em referência a um grande empreendimento imobiliário paulista. Mais adiante, reflete: "Porque a justiça deles só vai em cima de quem usa chinelo?".

No entanto, a proximidade com a produção musical no período da ditadura não ocorre só ideologicamente - sobretudo, na relação opressor-oprimido. Criolo fez uma versão atualizada para Cálice, hino de Gilberto Gil e Chico Buarque contra a censura, gravada em 1978. Na composição do rapper paulistano, a violência urbana é retratada como elemento repressor, além de ser evidenciados o preconceito racial e as desigualdades sócio-econômicas. "A repressão segue meu amigo, Chico", conclui.

É reverberando a voz dos desfavorecidos que o rap cumpre o seu papel. Seja com difusão local ou sob a distribuição eficiente das grandes gravadoras, ele não se dobra, não se alinha. O rap é comercial por sua voz e força, e não pelo puro entretenimento vazio. É envolvente, porque emociona em sua verdade. É popular, pois se aproxima do povo e, assim, respinga na elite, empertigando-a. Não, ele não é doce. Nem pode sê-lo. O rap é, desde a sua origem, o dedo na ferida.


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